Perdido de sua natureza singular como doença da vida, o homem criou Deus, depois O matou, e sentou em seu trono usurpado. Nisso se tomou como o mais importantes dos seres sobre a Terra e além Terra. Onde ele coloca sua imaginação torna-se proprietário.
Mas antes de se tomar como o novo deus, e para se proteger de qualquer alienígena herege, criou um feixe de valores que transporta em seu lombo de besta, milenarmente, como diz o filósofo Nietzsche. Assim, tudo passou a ser humano, demasiado humano. Só há o humano e nada mais. Uma patética e imóvel projeção de si mesmo sobre tudo. Até sobre os animais, principalmente os que ele mais torturou – e tortura –, como o cachorro, também alcunhado por cão.
Com o cataclismo que abate várias cidades do Rio de Janeiro, vitimando centenas de pessoas traduzidas em mortos, desabrigados e desalojados, como sempre ocorre em situações graves como esta, muita gente se dispôs à ação solidária. E no meio da solidariedade sempre escapa muita mistificação, que ofusca a realidade construída perversamente pelo homem responsável pelos cataclismos, e no meio dessa mistificação há os que querem faturar com todas as formas de sinais relativos à dor, como a imprensa sórdida.
Foi aí que um cachorro apareceu ao lado de uma cruz fincada no lugar onde havia sido enterrada uma das vítimas do cataclismo, Cristina Maria Cesário Santana, que tinha um cachorro com nome de Caramelo. Passou um servo da imprensa voraz e lascou uma fotografada, contextoalizando-a como matéria jornalística. Aí ocorreu a alegoria do amor antropocanino. Os mistificados logo comentaram que era a demonstração do sentimento de amizade do cachorro com sua dona enterrada.
A solidária dona Márcia Xerez, vendo o cão em uma fotografia tirada por uma amiga resolveu adotar o antropomorfizado cachorro. “Vi a foto e fiquei impressionada com a tristeza do olhar dele. Vou pegar esse bichinho para mim.”
Qual não foi a surpresa de dona Márcia. O cachorro ao lado da cruz, com olhar de “tristeza” não era o Caramelo de dona Cristina, como propagou a histérica carpideira imprensa. Era o Leão, companheiros, cachorro do coveiro. O Leão, distante do mundo humano, demasiado, humano, ficou na sua natureza ali, perto da cruz onde estava enterrada dona Cristina. Muito na dele, sem qualquer tristeza, como queria a humana dona Márcia, o Leão deitou descompromissado do mundo humano da cruz que matou Jesus Cristo e dona Cristina. O humano que todo momento celebra sua condenação canina.
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